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A ideia inicial desta pesquisa parte da percepção de um possível ponto comum entre as secreções produzidas pelo bombyx mori (o bicho da seda) – o fio, e pelo homo sapiens (o ser humano) – a fala2, em um processo analógico, já que se pode considerar que o bombyx mori secreta, naturalmente, seu fio, assim como o homo sapiens secreta, naturalmente, a sua fala. A partir da secreção expelida por estes dois animais, pode-se produzir tecidos, tramas. “Este tipo de tecido ainda é desconhecido na Dinamarca”, explicou Fengon. “Seda. O fio é secretado por lagartas verdes com chifres, alimentadas exclusivamente com folhas de amoreira. Os primeiros ovos e sementes, reza a lenda, foram trazidos clandestinamente da China por frades persas no oco de suas bengalas e assim chegaram a Bizâncio. Os casulos tecidos pelas lagartas, que depois se transformam em mariposas cegas que vivem apenas por alguns dias, são fervidos e desmanchados por mãos de crianças, e em seguida as velhas torcem os filamentos formando fios que por sua vez se transformam em tecidos tão milagrosos como esse que a senhora vê, verdadeira imagem do Paraíso em toda sua glória preciosa.”. (UPDIKE, JOHN GERTRUDES E CLÁUDIO, 2001, p. 132-133) E a questão em torno da qual se organiza essa pesquisa é: como o ator pode tornar presente um momento que não é presente – uma vez que ele já sabe tudo o que vai acontecer? Nesse sentido, esta pesquisa parte do quadro teórico da Teoria da Enunciação, nos moldes de Benveniste (2005 a e b) e de Bakhtin (1981, 1992) mas também segue caminhos de teóricos mais contemporâneos, como o de Flores (2008) para tentar descortinar os caminhos de construção dos processos da enunciação3, entendida aqui como mecanismo de“enunciado”, isto é, como um processo de produzir enunciados em uma situação empírica de comunicação e, por isso mesmo, como fenômeno único, irrepetível e quase que involuntário no e do homem. No que concerne ao uso que o ser humano faz da língua, Bakhtin (op. cit) parece estar à frente de seu tempo, uma vez que constitui preliminarmente uma teoria que prioriza o caráter da enunciação como processo não reiterável e que pressupõe outras enunciações, ou seja, é um acontecimento discursivo projetado a partir de uma memória, das muitas vozes que trazemos em nós e que nos constituem. Assim sendo, a enunciação seria um fenômeno, em alguma medida, inapreensível, mas decodificável devido às marcas linguístico-discursivas que deixaria no enunciado. São justamente essas marcas que permitem tantas interpretações diferentes de um mesmo texto4– que veremos ao longo deste trabalho, no qual faremos a exposição de três possibilidades de enunciação. Traçando-se, pois, um paralelo com a interpretação – com a apropriação que um ator faz de um texto – percebemos que seu organismo deve incorporar as falas produzidas por um outro enunciado5 de modo que ele, de fato, se aproprie deste outro tecido e o incorpore à sua própria fala num ato antropofágico da fala de outro. É preciso devorar a fala, degluti-la, regurgita-la, tornar a degluti-la para então digeri-la e assim trazê-la novamente à boca. Me rasgue Amasse Me coloque inteira na sua boca Me mastigue Me rumine Regurgite e torne a me engolir Degluta Só me tire da sua boca Quando puder me fazer sua. De acordo com Blüthenstaub (2000: 35342), “Wie kann ein Mensch Sinn für etwas haben, wenn er nicht den Keim davon in sich hat? Was verstehn soll, muß sich in mir organisch entwickeln6”. Por algum caminho, o texto tem que se tornar orgânico no corpo do ator, fazer parte de seu organismo, se tornar um órgão, pois só assim poderá ser enunciado. A enunciação seria o tempo e o espaço onde se forma e de onde parte aquilo que se materializará em fala. A fala do ator – o texto que ele deve proferir – só soará espontâneo se o ator enunciá-lo. Ele precisa encontrar essa região altamente subjetiva do homo sapiens – que é onde se engendram as possibilidades de enunciações – para que sua fala saia com o tom do não reiterável, como pressupõe Bakhtin. Como esse irrepetível pode acontecer no trabalho de um ator se ele basicamente trabalha com a repetição? Como é possível fazer com que o movimento de uma enunciação – aquele momento único de presença – esteja presente no ato de dizer uma fala que não é espontânea? Como ele pode dizer suas falas sem que estas soem falsas, parecendo que as palavras - apesar de estarem decoradas e de o ator já saber o que dirá do início ao fim de seu discurso – estejam sendo articuladas naquele exato momento, espontâneas como as que proferimos em nosso cotidiano? Quais seriam os caminhos já mapeados que os atores poderiam percorrer ou quais eles podem vir a criar, nos seus treinos profissionais, que os levariam a essa espontaneidade que reside na enunciação, de modo que o texto fosse escutado e sentido, ao ser falado, como um “acontecimento”? E como manter o estado de “acontecimento” durante as inúmeras repetições de uma cena durante gravações, filmagens ou de temporadas teatrais? Esta pesquisa pretende, então, constituir-se a partir da questão inicialmente colocada, das perguntas secundárias que a acompanham e desse diálogo analógico entre o tecer com os fios do bicho da seda – ação pensada que o ser humano faz das secreções espontâneas do bombyx mori, e o dizer um texto decorado – ação pensada que um ator pode fazer ao tecer falas de outrem numa cena, como se estivessem sendo secretadas de si naquele momento presente, num processo de enunciação empírico. 6 Tradução livre: “Como pode um ser humano ter sentido para algo se não tem em si mesmo o seu germe? O que eu devo entender tem de se desenvolver em mim organicamente.” (Novalis, Blüthenstaub, 2000: 35342, traduzido por Ana Cristina Pinto da Silva, mestranda em Ciência da Literatura da UFRJ – jan/jun 2007) 6 A hipótese inicial da qual partimos gira em torno do fato de que o texto só encontraria seu tom na medida em que os atores o proferissem como “acontecimento” enunciativo, isto é, na medida em que o texto fosse assimilado como “fala espontânea” pelo ator no momento da encenação. Mais que espontâneo, o ator teria que conseguir proferir o texto de modo vivo. Estando vivo. Tornando presente aquilo que não é o presente – um texto decorado. A situação do ator é única: ele está em cena naquele momento que é o presente, mas o que dirá não é movimento do presente mas deve assim se tornar. Desse modo, conseguindo tal apropriação do presente, estaria dado o caráter espontâneo existente na secreção natural que se torna fala no homo sapiens da mesma maneira que o fio é secretado do bombyx mori. “O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo que somente o ato de enunciação torna possível [...]” (BENVENISTE, 2005, p. 84) |
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